"Diários de Motocicleta" (2004) é um filme que transcende a simples narração de uma viagem para se transformar em uma reflexão profunda sobre a identidade, a justiça social e as transformações internas. Dirigido pelo brasileiro Walter Salles, o filme é baseado nos diários de Ernesto "Che" Guevara e de seu amigo Alberto Granado, que, em 1952, embarcaram em uma viagem de motocicleta pela América Latina. No elenco, Gael García Bernal interpreta um jovem Ernesto, enquanto Rodrigo de la Serna assume o papel de Alberto. Através das paisagens e dos encontros com o povo latino-americano, a narrativa explora a jornada que moldou o espírito revolucionário de Che, revelando as contradições e desigualdades da América Latina.
Uma Jornada Transformadora
No início do filme, vemos Ernesto como um jovem médico argentino, idealista e com um olhar romântico para a vida. Acompanhado de seu amigo Alberto, ele parte em uma viagem de motocicleta que começa como uma aventura descompromissada e acaba se transformando em uma jornada de transformação pessoal e social. O filme utiliza essa narrativa de viagem para explorar as realidades e injustiças enfrentadas por comunidades indígenas, camponeses e pessoas marginalizadas ao longo do continente.
O aspecto transformador da viagem é algo que ressoa profundamente no espectador. Walter Salles captura as nuances dessa mudança, mostrando como cada encontro, cada paisagem e cada história compartilhada vai abrindo os olhos de Ernesto para as duras condições de vida dos povos latino-americanos. Essa transformação é evidente na atuação de Gael García Bernal, que traduz com sutileza as mudanças no olhar e na postura do jovem que começa a questionar as estruturas de poder e as injustiças sociais.
Uma América Latina Vista de Perto
A cinematografia de "Diários de Motocicleta" é uma ode à América Latina. Desde as vastas paisagens andinas do Chile e do Peru até as florestas amazônicas, o filme captura a diversidade e a beleza natural do continente. A direção de fotografia de Eric Gautier torna cada cena um verdadeiro quadro, ressaltando tanto a grandiosidade das paisagens quanto a simplicidade das vilas e comunidades indígenas.
Contudo, o filme não romantiza a América Latina; pelo contrário, ele revela as duras realidades que muitos enfrentam. É ao cruzar esses cenários que Ernesto e Alberto se deparam com a pobreza, a exclusão e o sofrimento dos povos indígenas e trabalhadores rurais. Esses encontros são momentos-chave na narrativa, pois apresentam ao protagonista o cenário de desigualdade que ele, anos mais tarde, tentará combater como revolucionário.
A Construção de um Ideal Revolucionário
"Diários de Motocicleta" é, em muitos aspectos, uma história sobre a gênese de um ideal. O filme não aborda diretamente o papel revolucionário que Ernesto Guevara assumiria, mas revela as raízes de sua futura ideologia. Através das experiências e reflexões de Ernesto ao longo da viagem, o público compreende como ele passa a ver a necessidade de lutar contra as injustiças sociais e as desigualdades de seu tempo.
Um dos momentos mais marcantes do filme é o período que Ernesto e Alberto passam em uma colônia de hanseníase na Amazônia peruana. Lá, Ernesto se conecta com os pacientes de uma maneira que vai além das barreiras físicas e sociais. Ele recusa as luvas que separam médicos e pacientes, um gesto que simboliza seu desejo de abolir as fronteiras que distanciam os seres humanos. Essa experiência marca um ponto de virada, pois representa a compreensão de Ernesto sobre a solidariedade e empatia como princípios fundamentais de uma sociedade justa.
Atuações e Direção Brilhantes
Gael García Bernal brilha no papel de Ernesto Guevara, conseguindo capturar a complexidade e as nuances de um jovem que, ao mesmo tempo em que se diverte na aventura, sente um despertar para causas maiores. Rodrigo de la Serna também merece destaque como Alberto Granado, trazendo um equilíbrio cômico e humano que complementa a seriedade crescente de Ernesto.
A direção de Walter Salles é delicada e respeitosa, sem jamais transformar a figura de Ernesto em um símbolo exagerado ou heroico. Ele opta por um retrato humano, destacando a curiosidade, a vulnerabilidade e as descobertas do jovem médico. Essa escolha é crucial para que o público se conecte com Ernesto e entenda a jornada que o moldou antes de se tornar um ícone.
"Diários de Motocicleta" é um filme poderoso e envolvente que nos convida a refletir sobre nossa própria visão de mundo e sobre as realidades que muitas vezes ignoramos. Walter Salles apresenta uma obra cinematográfica que é, ao mesmo tempo, poética e política, utilizando a narrativa de uma viagem para ilustrar o despertar de uma consciência social.
Mais do que uma biografia de Che Guevara, o filme é uma história universal sobre como as experiências e encontros da vida podem nos transformar e guiar nossos caminhos. É uma obra que nos lembra da beleza e das complexidades da América Latina e do poder transformador da empatia e do compromisso com um ideal.