Quando se fala em clássicos do cinema brasileiro, “O Auto da Compadecida” ocupa um lugar de destaque. Baseado na obra homônima de Ariano Suassuna, o filme, lançado em 2000 e dirigido por Guel Arraes, é um marco cultural que combina humor, crítica social e religiosidade de forma singular.

Uma Comédia de Costumes com Tons Universais

Ambientado no sertão nordestino, “O Auto da Compadecida” conta a história de João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello), dois anti-heróis que enfrentam as adversidades da vida com astúcia e bom humor. João Grilo é o arquétipo do "herói malandro", enquanto Chicó é seu companheiro medroso e contador de histórias fantásticas. Juntos, eles atravessam situações absurdas e hilárias que os levam a confrontar figuras como o padeiro avarento, o cangaceiro Severino (Marco Nanini) e até mesmo o Diabo (Luiz Melo).

O roteiro é um ponto alto do filme, mantendo o tom espirituoso da peça teatral original. Com piadas afiadas e um ritmo impecável, a narrativa transita entre o cômico e o dramático sem perder a consistência. As situações inusitadas, como a audiência no céu presidida pela Compadecida (Fernanda Montenegro) e pelo Cristo (Maurício Gonçalves), são um exemplo do brilhantismo com que o filme aborda temas universais como moralidade, justiça e redenção.

O Sertão como Protagonista

“O Auto da Compadecida” é também uma celebração da cultura nordestina. O sertão, com sua paisagem árida e desafiadora, funciona como um personagem por si só, moldando a história e as personalidades dos protagonistas. A trilha sonora, composta por músicas regionais, e a direção de arte, que capta com fidelidade o universo sertanejo, são elementos essenciais para criar uma atmosfera autêntica.

O uso do humor regional também é uma característica marcante. As tiradas rápidas e o linguajar próprio do nordeste aproximam o público da história, independentemente de sua origem. Essa brasilidade tão evidente no filme o torna uma experiência única e profundamente identificável para os espectadores.

Elenco e Atuações Memoráveis

Um dos maiores trunfos de “O Auto da Compadecida” é seu elenco estelar. Matheus Nachtergaele brilha como João Grilo, equilibrando carisma e esperteza em uma interpretação inesquecível. Selton Mello, por sua vez, confere profundidade emocional a Chicó, garantindo momentos de vulnerabilidade e humor.

Fernanda Montenegro, em uma participação especial como a Compadecida, é simplesmente magnética. Sua performance carrega a sabedoria e a compaixão da personagem com uma leveza que transcende o tempo. Luiz Melo, como o Diabo, entrega uma atuação sombria e carismática, enquanto Marco Nanini rouba a cena como o cangaceiro Severino.

Crítica Social e Relevância Contemporânea

Embora seja uma comédia, “O Auto da Compadecida” não foge de comentários sociais incisivos. A desigualdade, a corrupção e a hipocrisia religiosa são alvos frequentes do humor satírico do filme. Essas questões, infelizmente, continuam pertinentes no Brasil atual, o que torna a obra tão relevante hoje quanto no momento de seu lançamento.

Além disso, a representação da religiosidade popular brasileira, com suas crenças e contradições, é tratada com um misto de respeito e ironia. A figura da Compadecida é um símbolo poderoso de justiça e empatia, oferecendo uma visão humanizada e inclusiva da fé.

Legado Imortal

Mais de duas décadas após seu lançamento, “O Auto da Compadecida” permanece como um dos filmes mais amados do Brasil. Seu impacto transcende gerações, sendo frequentemente citado como uma das maiores adaptações cinematográficas da literatura nacional.

Com sua combinação de humor, crítica e humanidade, o filme de Guel Arraes capturou a essência do Brasil de Ariano Suassuna, entregando uma obra que é, ao mesmo tempo, divertida e reflexiva.

Assistir a “O Auto da Compadecida” é uma experiência que ultrapassa fronteiras culturais, oferecendo uma visão autêntica e apaixonante do Brasil. Uma obra-prima que merece ser revisitada continuamente.